O Marcello Quintanilha estará nesta quarta-feira, 19h, na ITIBAN para lançar seu mais recente álbum, Hinário Nacional (Veneta). Para dar uma aquecida nestes dias frios, o Lielson Zeni entrevistou o autor por email para nosso blog.
Em qual período surgiram as histórias de Hinário nacional? Antes de Tungstênio/Talco de vidro, entre elas, depois?
Quintanilha: Um pouco de tudo; algumas antes, outras durante, outras depois. O que não representa um dado especialmente relevante, no sentido de que não sigo uma lógica cronológica de produção, nem mesmo no que se refere às histórias longas.
Depois de duas narrativas longas (três, se contarmos a adaptação de O ateneu), você volta a publicar HQs curtas. Como você sentiu esse movimento do ponto de vista narrativo? Como você diferencia criativamente do momento da ideia até a execução quais histórias são curtas ou longas?
Q: Como falei, não há nenhuma diferenciação. As histórias existem pelo que são. Não há uma decisão própria nesse sentido, uma equação que me levasse a sistematizar uma forma de produção que se sustentasse nisso.
Logo, a cronologia da publicação não exerce qualquer interferência em minha atividade produtiva, de modo que não posso estabelecer uma correlação entre “etapas” de produção, o que joga por terra a noção de uma “volta” a narrativas curtas, porque desse modo, teríamos que identificar a ordem das publicações como fator que determinasse sua produção efetiva.
Sim, sei que parece ilógico.
Você comentou em uma outra entrevista que considera o painel o elemento básico da narrativa de HQ. Isso quer dizer que a paginação pode variar (como nas duas versões de A Fealdade de Fabiano Gorila), porque você está ancorado (narrativamente) no painel? Levando isso em conta, qual é o planejamento que você tem pra uma página?
Q: Ao longo dos anos, uma imensa gama de pessoas envolvidas com quadrinhos se acostumou a um discurso que hiper valoriza a página como unidade narrativa, sustentado em uma suposta ideia de interrelação entre os elementos que a compõem e que, em última análise, a tornam um elemento capitalizado em si mesmo.
Esta percepção se dá, sobretudo pelo fato mesmo de o quadrinho ser principalmente difundido através da divisão em páginas de uma determinada mídia, um determinado objeto, como o livro ou revista.
É também largamente assimilada a ideia de que, através da composição e interrelação dos elementos da página, se obtém do leitor uma espécie de “percurso” visual através de todo seu espaço, sob o pretexto de “guiar” os olhos do leitor através da dela.
Nunca estive totalmente de acordo com essa afirmação porque ela pode facilmente nos levar a sistematizar a experiência da leitura de modo relativamente superficial, e me interessa, como autor, ultrapassar essa perspectiva.
Páginas também são unidades monetárias, uma vez que, através de delas, se pode contabilizar o adiantamento de direitos autorais, atrelando-os à sua produção.
Mesmo a precariedade de um pensamento acadêmico que se entenda como oficial; todos são fatores que contribuem para a cristalização de um “mito da página”.
O fato de sustentar minha narrativa na lógica do quadro como principal unidade narrativa, contudo, não significa que eu despreze a página como legítima unidade dessa construção narrativa, mas não a situo em maior grau de importância, nem mesmo complexidade.
Desse modo, entendo a página não como “a” unidade narrativa da linguagem, mas sim como “uma” possível unidade narrativa, o que sugere uma mudança substancial de percepção, uma vez que considero que realmente muito poucos autores são capazes de tirar partido desse elemento, para algo que efetivamente vá além dos óbvios recursos de equilíbrio e disposição de massas ou utilização da passagem de página como temporizador.
No que se refere ao planejamento de uma página, como colocado na pergunta, ele se condiciona exatamente à dinâmica imposta pela sequência de quadros.
E quais seriam os elementos das HQs que você acha que não se dá a merecida atenção? Pergunto isso porque muitas avaliações de quadrinhos concentram-se no desenho e seu trabalho apresenta uma preocupação com o texto verbal. Eu penso muito em críticos e leitores brasileiros, que dão uma grande atenção ao desenho (alguns até se dedicam a falar da narrativa), mas me parece que elementos como texto, cor/retícula, letreiramento, balonamento, formato da publicação (tamanho, cor da página), entre outros, ficam em segundo plano. queria saber se há uma preocupação sua em usar da “melhor forma possível” esses elementos no seu trabalho e entre aqueles que usa, qual acha que seria o “patinho feio”, que pouca gente dá atenção e você enxerga como bastante relevante. num exemplo pessoal, eu acho que se dá pouca atenção ao letreiramento, o que acaba diminuindo muito a força de algumas histórias.
Q: Absolutamente todos os elementos que compõem o quadrinho são importantes pra mim e não posso sequer conceber que um se sobreponha ao outro. Fica claro que a dicotomia desenho/texto deixa de ter sentido sob essa ótica, porque a forma com que o quadrinho se estruturou ao longo do tempo eminentemente transforma todos os seus componentes em códigos que se equivalem e não posso identificar texto e desenho como necessariamente superiores aos outros.
Do meu ponto de vista, os critérios de impressão aplicados ainda são muito primários, porque se baseiam na mesma lógica aplicada à impressão de fotografias, lançando-se mão de uma equivalência técnica que não necessariamente funciona para os quadrinhos, acarretando uma preparação de arquivos para impressão que ainda deixa de lado diretrizes tão básicas como separação de preto e demais cores, segundo suas respectivas necessidades de resolução.
Letreiramento pode ser considerado um aspecto também pouco aprofundado do processo.
Seus trabalhos mais recentes trazem um traço “menos realista” que Sábado dos meus amores ou Almas Públicas, com mais abertura pra manchas na página, por exemplo. Esse gesto se repete em outros elementos dessas HQs também Acho que talvez por Sábado e Almas terem cor, vejo uma forte pegada realista no seu desenho, com a presença bem definida de volumes e tons, por exemplo. Já em O ateneu me parece que há um uso um pouco mais expressionista da cor do que antes. Em Tungstênio, que é PB, o traço ainda é bastante figurativo, sendo que a força de expressão está mais na decupagem e no andamento narrativo; já em Talco e Hinário, eu vejo uma abertura a uma arte mais solta e simplificada, com algumas páginas de expressão caminhando ao abstrato mesmo (principalmente em Talco), com manchas na arte que são muito mais dedicadas à expressar do que representar. Então, vejo uma caminhada no seu desenho em que a representação mais realista é posta de lado a favor da expressão de sensações e ideias. esse gesto, de representar menos e expressar mais, se repete no uso de outros elementos, como texto, cor, balonamento, letreiramento? Ou você não enxerga isso? Nesse caso, o que imagina ser o efeito dessa alteração no seu desenho?
Q: Acho que o que você quer dizer por “menos realista” significa, na verdade, uma percepção ultimamente mais acentuada do expressionismo, mas não “mais presente”, uma vez que o expressionismo sempre foi um componente importante da minha forma de narrar, desde os primeiros trabalhos, embora o hiperrealismo ocasionalmente o torne menos evidente.
Então, mesmo que haja mudanças de técnicas na realização dos trabalhos, sua base de construção permanece eminentemente a mesma.
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