Lourenço Mutarelli é um autor que se destacou durante a década de 1990 e quebrou conscientemente com a ideia de que o humor era característica indissociável dos quadrinhos brasileiros underground. Ao iniciar a produção de suas primeiras histórias em quadrinhos, na segunda metade da década de 1980, Mutarelli via o gênero humorístico como uma condição a ser cumprida para tornar-se um profissional reconhecido na área. “Eu insisti no humor porque o ‘mundo trata melhor quem ri’ e também porque era uma imposição de mercado”.
Entre 1988 e 1990, Mutarelli produziu fanzines como o Over-12 e participou de publicações como Tralha e Mau, um suplemento da revista Animal. Criou personagens como Cãoziño sem Pernas e histórias em quadrinhos que buscavam fazer humor. Produzia também histórias curtas com temática depressiva e existencialista.
Após um episódio traumático (em 1988, com a intenção de levar Lourenço Mutarelli a uma festa surpresa comemorando seu próprio aniversário, um grupo aplicou um trote, simulando um assalto e sequestro. Mutarelli foi vendado e jogado no banco de trás de um carro, onde seguiu com uma arma na cabeça ouvindo a promessa de que seria violentado e assassinado. O trote teve como consequência o desencadeamento de uma crise depressiva crônica. O álbum Transubstanciação foi produzido ao término dessa crise. Esse traumático episódio foi contado como história em quadrinhos pelo próprio Mutarelli em Requiem, uma publicação de 1998 pela editora Tonto), abandonou as tentativas de produzir humor e produziu quatro álbuns: Transubstanciação (1991), Desgraçados (1993), Eu te amo Lucimar (1994) e A Confluência da Forquilha (1997). Apresentavam a estética underground em suas linhas carregadas, figuras disformes, representação de sexo completamente em desacordo com os padrões mainstream. Ocupando entre 60 e 96 páginas, as tramas versavam sobre protagonistas angustiados que viviam diversas situações violentas e desesperançosas, frequentemente morrendo ao final.
Em 1999 foi publicado O dobro de cinco, protagonizada pelo personagem Diomedes. Nessa obra, Mutarelli faz uma releitura dos cânones das histórias de detetives e inicia uma nova fase de sua produção. Sem utilizar a figuração exagerada dos álbuns anteriores, mantém o pessimismo e a melancolia para contar a história do detetive fracassado que parte em busca de um mágico desaparecido. A história de Diomedes se desdobrou em mais três livros: O rei do ponto (2000), A soma de tudo – parte 1 (2001) e A soma de tudo – parte 2 (2002). Os volumes foram publicados pela editora Devir e, em 2012, relançados em uma compilação de 432 páginas pela Companhia das Letras. Um dos temas que ele começa a abordar são os limites entre a ficção e a representação documental da realidade. No quarto volume da trilogia , desenha Mauro dos Prazeres, seu editor, e usa trechos de textos que ele escreveu para construir um diálogo com o personagem Diomedes.
Lourenço Mutarelli teve ainda dois álbuns publicados pela editora Devir: Seqüelas, de 1998, com coletâneas de histórias curtas publicadas em fanzines e revistas durante a década de 1980, e Mundo Pet, de 2004, com histórias curtas coloridas produzidas para o site de quadrinhos CiberComix, entre abril de 1998 e outubro de 2000. Nas histórias apresentadas em Mundo Pet surgem novos temas, como a memória e a representação da realidade. Mutarelli começa a empregar fotografias e outras técnicas de ilustração.
Após o sucesso do livro O cheiro do ralo (2002), Mutarelli passou a se dedicar à produção literária, deixando os quadrinhos de lado. Sua última produção em quadrinhos foi A Caixa de Areia (2006), na qual trabalhou com temas como narrativa, ficção e realidade. Duas tramas correm em paralelo. Em uma, dois personagens estão presos dentro de um carro encalhado no meio de um imenso deserto. Na outra, Mutarelli desenha a si mesmo, sua família e amigos, baseando-se em referências “reais” e conversas gravadas para construir os diálogos. Esse trabalho apresenta mais referências à literatura e ao teatro do que à estética underground.
Já em 2011, Mutarelli produziu Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, um livro ilustrado que dividiu opiniões entre jornalistas e resenhistas sobre ser ou não uma história em quadrinhos. Publicado em formato horizontal, apresentava uma ilustração por página, algumas com o texto do narrador. As ilustrações se relacionavam umas com as outras, não apenas as que se encontravam próximas, mas ao longo do livro, criando redes de significados entre espaço e tempo.
E agora, O grifo de Abdera é um romance com histórias em quadrinhos dentro, já que o protagonista é quadrinista. Parece que vem mais discussão entre os críticos por aí.
Liber Paz é quadrinista, autor de As coisas que Cecília fez e professor universitário