Roberval Machado fez a mediação do bate-papo com Marcello Quintanilha na Itiban no dia 28 de março e apresenta suas impressões de como foi a conversa e sobre o álbum Talco de Vidro.
Sentimentos fortes dão a tônica de Talco de Vidro
Roberval Machado
Logo que se começa a ler Talco de Vidro nota-se algumas diferenças em relação aos trabalhos anteriores de Marcello Quintanilha. Nos outros álbuns, muitos personagens mais populares, de uma classe média baixa. Agora temos Rosângela, uma dentista de classe média alta com amigos e marido que transitam nesse meio, com uma vida aparentemente perfeita com tudo o que se espera para alguém de sua posição.
Já a sua prima é diferente, vem da periferia, é separada e sem filhos, ganha mal, mas tem um sorriso que incomoda Rosângela. A princípio parece que teremos um estudo social, principalmente porque a dentista expressa certo preconceito com quem está classes abaixo da sua. Depois nota-se que esse não é foco da obra, apenas elemento da personagem.
No bate-papo que Quintanilha teve na Itiban no dia 28 de março, o primeiro ponto que frisou é que não se trata de uma obra sobre uma determinada classe social, nem nunca teve essa intenção de que suas obras fossem um estudo sobre classes sociais. Ele parte da ideia de uma grande classe média no Brasil que abrange a maior parte do povo e ele faz suas obras para que retratem pessoas que vivem nessa parcela da população.
O que ele quis explorar em Talco de Vidro foi uma espécie de pensamento que algumas pessoas têm e como isso influi nas suas relações. Quintanilha parte de realidade para criar a sua ficção, de pessoas que conheceu e conviveu, mas sem retratá-las diretamente.
A história de Rosângela vai nesse caminho, explorando primeiro a inveja que tem da prima, por motivos que não sabe explicar direito. Frustração e tristeza são outros sentimentos constantes no cotidiano da dentista. Tudo isso cria uma crise existencial que vai mudar sua vida. Depois, ainda enfrenta uma depressão que a levará a história a um final impactante.
Quando perguntando se esses temas ou situações surgiram por acaso ou eram intencionais, Quintanilha afirmou categoricamente que “tudo é intencional” nesta HQ. Nada foi feito gratuitamente.
Um ponto interessante é a questão do narrador. Em Talco de Vidro há um narrador em terceira pessoa (às vezes em primeira) que não tem uma narração fria e distante, como se fosse um narrador onisciente, mas alguém que conta para o leitor o que Rosângela pensa e sente. Às vezes não é muito claro na explicação, se corrige. Quintanilha disse que os quadrinhos dificilmente exploram diferentes formas de narração como acontece na literatura, normalmente tudo é muito uniforme na narração em terceira pessoa. Ele propõe algo diferente aqui.
Já na primeira página nota-se outra diferença com os álbuns anteriores: os quadrinhos não tem requadro, assim como os personagens não tem linhas definindo seus corpos, somente os rostos possuem traços. Uma interpretação (minha) seria uma metáfora para a vida de Rosângela: mesmo não tendo nada que a impedisse de sair da sua situação, continua presa naqueles pensamentos com essas barreiras invisíveis.
Quintanilla afirmou que essa forma de desenhar foi intencional (novamente “tudo é intencional”), com o objetivo de deixar tudo meio difuso, como se os personagens fossem borrões. Tudo em consonância com o que desejava para a história de Rosângela. Também contou que utilizou retículas para o desenho dos personagens, uma técnica pouco usada atualmente pelos artistas de quadrinhos, mas que no passado já teve grandes mestres a usando.
O cuidado com os títulos de seus álbuns é uma característica marcante de Marcello Quintanilha. Nunca são óbvios e sempre são profundamente interligados com o teor da história. Confesso que não cheguei a uma conclusão sobre o que seria o título e por isso perguntei a ele sobre o significado. Quintanilha não quis comentar muito sobre a razão do título, apenas disse para “imaginar um talco feito de vidro, como algo que pode te queimar por dentro”.
Ainda contou sobre a produção do álbum, que levou mais de um ano. Começou ainda quando estava fazendo Tungstênio. Por enquanto não há previsão para publicação na Europa.
Com certeza Talco de Vidro deve seguir o mesmo caminho feito por Tungstênio no ano passado e deve figurar na maioria das listas de melhores quadrinhos deste ano.
Confira a seguir alguns destaques de outros assuntos da conversa com Marcelo Quintanillha na Itiban na sessão de bate-papo e autógrafos:
Tungstênio
Segundo Quintanilha, a recepção de Tungstênio foi muito além do que ele esperava. Após participar de vários eventos de quadrinhos e lançamentos por várias cidades, pode sentir que o público foi bastante receptivo a seu trabalho.
Ele começou a fazer a história sem ter acertado sua publicação. Quando recebeu o convite da editora espanhola La Cúpula para lançar um álbum, apresentou o projeto de Tungstênio e editora topou. Depois fechou o contrato com a Veneta para a publicação no Brasil, que acabou saindo antes, em maio de 2014, e na Espanha em novembro.
Mercado nacional
Quintanilha vê que o mercado nacional está se fortalecendo com os eventos de quadrinhos e da produção dos artistas, mas também ressaltou que falta uma espécie de formação para os artistas na produção para o mercado. Quando iniciou sua carreira, havia revistas de gênero, como terror e artes marciais, assim conseguia produzir duas histórias por mês e vê-las publicadas no mês seguinte e que isso ajudou muito no seu desenvolvimento como artista. Acredita que falta algo assim atualmente, não necessariamente as revistas de gênero, mas a publicação regular.
Capas e edições europeias
Nos seus álbuns publicados na Europa, Quintanilha esteve envolvido na edição, acompanhando a tradução e escolhendo a capa da versão francesa de Sábado dos Meus Amores (Mes Chers Samedis). Diferentemente das capas da Veneta, que são feitas por um estúdio e Quintanilha só aprova. No caso de Talco de Vidro, ele sugeriu a cor verde, enviou o desenho e só pediu que tivesse um destaque nos olhos. O resto foi trabalho do estúdio.
Método de trabalho
Quintanilha falou ser muito desorganizado e não ter nenhum método de trabalho, nem horário fixo, nem quantidade de horas para trabalhar. Enquanto desenha gosta de ouvir música em volume muito alto. Música bastante variada, de rock a música brasileira, passando por outros ritmos, o importante é ser muito alta. Nenhum vizinho reclamou até hoje.
Próximo álbum
Não há nenhum álbum planejado por enquanto, pelo menos é o que afirmou Marcello Quintanilha. Talvez esteja só escondendo o jogo…
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