Existe uma longa discussão, que começou anos atrás, quando se fala de quadrinhos e literatura: podem as páginas divididas em quadradinhos chegar à altura dos livros “de verdade”?
Qualquer leitor de quadrinhos já sabe a resposta. Mas não é todo mundo que pensa como eles.
As duas artes sempre flertaram: veja a quantidade de obras literárias que se tornaram HQs. As adaptações sempre existiram no Brasil (e no mundo) e retornaram com força nos últimos 5 anos, motivadas pelas expressivas compras de livros para as bibliotecas escolares por parte do governo federal, que sempre escolhe algumas HQs na lista.
Parece que, na cabeça das editoras, uma adaptação literária seria o caminho mais curto até as escolas. Independentemente do pensamento “comercial”, ótimas adaptações em HQ têm sido feitas no Brasil, como a linha da editora Ática, ou pérolas como A relíquia de Eça de Queiroz (Macartti) e Ensaio do vazio (7 letras). E há ainda as traduzidas, como as HQs da Salamandra e o genial Pinóquio, de Winshluss.
Mas falemos das adaptações outro dia, pois seria interessante focar em outro laço que existe entre literatura e HQs.
São os criadores que transitam entre as duas áreas. Por exemplo, Paulo Leminski, o poeta kamiquase, escreveu roteiro de quadrinhos que foram publicados pela Grafipar. Há uma HQ de William Burroughs. E ainda tem Nelson Rodrigues, o cronista da vida privada, que traduziu tiras do inglês para o suplemento Guri.
Vale lembrar do fabuloso Poema em quadrinhos, ilustrado e escrito por Dino Buzzati, mais conhecido por O deserto dos tártaros, clássico da literatura italiana.
E tem também os livros de pessoas dos quadrinhos, como Deuses americanos e O livro do cemitério, do Neil Gaiman (Sandman); A voz do fogo, de Alan Moore (Watchmen, V de Vingança, Liga extraordinária); O jogo, de Brad Meltzer (Arqueiro Verde, Liga da Justiça, Crise de identidade) e À queima roupa, de Greg Rucka (Gotham City contra o crime, Batwoman, Without, Jogos de poder). Ah, e o longo ensaio Superdeuses, de Grant Morrison (Grandes astros: Superman, Batman, Os invisíveis, Homem-animal).
E existe outro movimento, que é dos mais interessantes: convocar escritores para escreverem quadrinhos. Há um projeto encampado pela Companhia das Letras, que rendeu um álbum brilhante: Cachalote, com roteiro do escritor Daniel Galera (Mãos de Cavalo e Cordilheira) e arte de Rafael Coutinho (Beijo Adolescente e Drink). A coisa vai tão bem que o material foi publicado na França.
A mesma editora, com seu selo Quadrinhos na Cia., já anunciou para outubro a Máquina de Goldberg, HQ escrita por Vanessa Bárbara (O livro amarelo do terminal) e ilustrada por Fido Nesti (Lusíadas em quadrinhos e Loucas de amor).
E ainda para este ano a promessa é de lermos V.I.S.H.N.U., ficção científica com arte de Fábio Cobiaco e roteiro de Ronaldo Bressane (O céu de Lúcifer e O impostor) e argumento de Eric Acher; e Guadalupe, com roteiro da poeta Angélica Freitas (Rilke Shake e Um útero é do tamanho de um punho) e desenhos de Odyr Bernardi (Copacabana).
Ainda há para 2013 Campo em branco, do roteirista Emilio Fraia (Verão de Chibo) com arte de DW (Vigor Mortis e La naturalesa) e Mulungu, do escritor Marcelino Freire (Contos negreiros e Rassif) e do quadrinista Eloar Guazzelli (Fernando pessoa e outras pessoas, Pagador de promessas e O relógio insano).
E prometido há muito tempo é a parceria entre o escritor Daniel Pellizzari (O livro das cousas que acontecem e Dedo negro com unha) e o desenhista Rafael Grampá (Mesmo delivery), Furry Water, que deve sair pela Dark Horse, mas sem nenhuma previsão de lançamento ainda. Certamente, tão logo saia lá, deve aparecer por aqui.
Há ainda o trabalho de André Vianco, autor de diversos livros de terror, que lançou na última Bienal do livro de São Paulo a HQ O turno da noite, desenhada por Denilson Santtos. Antes ele já tinha quadrinizada Os vampiros do Rio d’ouro. Falando dos escritores best-seller, Orlando Paes Filho, criou o mundo do guerreiro medieval Angus com romances, HQs e RPG.
Também há Lourenço Mutarelli, que migrou das HQs para a literatura. Recentemente lançou um belíssimo álbum ilustrado e a reedição da saga de Diomedes. Mas ele parece mesmo estar mais focado em publicar seus romances do que voltar a desenhar. Ótimo pra literatura, ruim para os quadrinhos.
E vale falar de Joca Reiners Terron, que é o organizador da coleção em que escritores escrevem HQs da Companhia das Letras (que falamos lá em cima) e produziu um livro meio HQ, meio romance. Guia de ruas sem saída conta com a excelente arte de André Ducci e mescla partes em quadrinhos e partes em texto em prosa, em que a arte não exemplifica o texto, mas o completa.
Ainda há muito mais a falar, mas paramos por aqui, porque é preciso encerrar os assuntos em um blog. Fica só a certeza de que o flerte entre literatura e quadrinhos já virou uma relação bem intensa.