De uns tempos para cá não é raro que os cadernos de cultura, especificamente os suplementos literários, falem também de quadrinhos. Na semana passada, o jornal carioca O Globo publicou uma matéria e uma HQ do Odyr. Viram?

Trecho de ‘A máquina narrativa’, de Odyr.
Tenho uma hipótese. O mercado editorial brasileiro tem vivido um momento de crescimento, acompanhado do (ou devido ao) crescimento econômico do Brasil. Essa expansão criou novos nichos e dessa forma editoras especializadas na publicação de literatura ‘de qualidade’ também passaram a publicar quadrinhos, traduções de grandes novelas gráficas estrangeiras, ou álbuns nacionais, principalmente aqueles cujos roteiros foram feitos por escritores da casa.
Simultaneamente, o governo incluiu os quadrinhos nos editais de compras de livros para as escolas públicas e com isso muitas editoras, principalmente as que visam ao setor educacional, também quiseram se aproveitar desse filão. Por conta disso, proliferaram adaptações de textos clássicos da literatura – a justificativa é que as adaptações aproximariam os alunos ao texto original.
Nos dois casos há sim uma ambiguidade. O limite entre a literatura e o quadrinho parece se esvaecer, como se dessa forma se quisesse ascender o caráter do quadrinho, com se ainda fosse preciso encontrar características externas a essa linguagem para lhe conferir um caráter artístico.
Surgem então novos termos, como ‘quadrinho autoral’ e ‘novela gráfica’, usados quase como eufemismos para distanciar certas obras daquelas outras, produzidas numa indústria de massa nessa nossa tão velha era da reprodutibilidade técnica.
E como tudo na vida, isso tem muitos lados, bons e ruins.
Um lado negativo é que para se aproveitar de uma nova oportunidade, aparecem por aí alguns materiais de qualidade, digamos, duvidosa, adaptações ruins, ou histórias inéditas fracas e apressadas – a pressa, sempre ela. Mas até aí nenhuma novidade, em qualquer campo da indústria cultural acontece a mesma coisa. Por isso o senso crítico e as referências são tão importantes: é preciso construir um filtro.
Por outro lado, o movimento do mercado oferece oportunidade de profissionalização aos autores (ainda é raro), os artistas aparecem mais na mídia, e, uma das características que acho mais importante para a consolidação dessa linguagem, surgem novos leitores de quadrinhos. Ainda que sejam atraídos por aquela obra roteirizada por aquele escritor já conhecido, ou pela adaptação do romance preferido, é muito possível que, depois de conquistado, esse leitor caminhe por outros lugares, descubra uma nova linguagem de expressão e – por que não? – de se expressar.
Quadrinho não é literatura justamente porque já é, oras, quadrinho. Claro, a questão não é assim tão simples, mas não discutiremos aqui os limites. Tudo que é sólido tem se desmanchado há mais de cem anos, já perdemos a ingenuidade das categorias. A separação por gênero, “número e grau” só serve para os caras que ganham com isso. A gente só precisa mesmo é saber o quanto aquilo com que dispomos nosso tempo e pensamento serve, de uma maneira ou de outra, para nos deixar mais humanos. É para isso que a arte existe.
PARA ENTENDER ESSA DE HQ E LITERATURA
Aqui vai uma sugestão de alguns títulos de quadrinhos que flertam com a literatura. Olha só:
Cachalote – Daniel Galera e Rafael Coutinho (Quadrinhos na Cia.)
Esse é o primeiro, e até aqui único, título de um projeto da Cia. das Letras que une quadrinistas e escritores. O roteiro do escritor Daniel Galera usa uma estrutura que lembra muito os romances de William Faulkner e a arte de Rafael Coutinho é linda. Indicadíssimo para quem sempre procurou muito mais que os velhos super-heróis nas HQs.
Kerouac, – João Pinheiro (Devir)
Biografia ficcionalizada de Jack Kerouac, um dos principais escritores beatniks. Apesar de toda a tradição dos quadrinhos undergrounds amercianos (os chamados comix), Kerouac não se relacionou com as HQs, o que em nada desqualifica essa bela homenagem de João Pinheiro.
A Metamorfose – Peter Kuper (Conrad)
Peter Kuper produz uma belíssima adaptação da sombria obra de Kafka. Eis uma adaptação que não foi pensada para facilitar a vida de leitor nenhum, mas sim para dar uma outra visão sobre uma das principais obras da literatura mundial.
Fun Home: Uma tragicomédia em família – Alison Bechdel (Conrad)
São poucas as HQs que souberem lidar tão bem com a literatura quanto Fun Home. Alison Bechdel conseguiu amarrar a história de um pai e uma filha, ambos homossexuais, ambos leitores apaixonados. Apesar de todas as semelhanças, a comunicação entre eles não é fácil. O grande desenvolvimento narrativo que a autora consegue é invejável.
As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay – Michael Chabon (Record)
Aqui, um pouco do caminho contrário. Um romance de Michael Chabon baseado no começo da indústria norte-americana de histórias em quadrinhos, focado em dois jovens que criam um personagem chamado Escapista. O autor aproveita anedotas, lendas e fatos sobre a vida de diversos quadrinistas para construir seu livro. As convenções, os fãs, as maracutaias, está tudo representado aí. Este livro deu origem a outros quadrinhos: As Incríveis Aventuras do Escapista, que são histórias com o super-herói do livro; e Os Escapistas, a tocante história um fã do Escapista que usa uma herança pra comprar os direitos do personagem e tenta reavivar sua revista.
Primeira Edição, Odyr Bernardi (Editora Secreta)
O Odyr, além de ser autor da HQ publicada em O Globo, também lança a revista Primeira Edição. Aqui estão reunidas várias histórias curtas escritas e desenhadas pelo Odyr. Ele também fala bastante sobre o seu processo criativo no blog que mantém.
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